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Tatuagem e subjetividade na cultura brasileira



NADA ALÉM DA EPIDERME: TATUAGEM E SUBJETIVIDADE NA CULTURA BRASILEIRA.

A prática da tatuagem constitui-se em preciosa fonte de reflexão sobre novas arquiteturas e gramáticas subjetivas e seus contextos de produção no âmbito da sociedade brasileira. Como forma de adorno corporal a tatuagem certamente tem sofrido notáveis alterações em sua forma de inserção e representação na cultura contemporânea. { Em poucas palavras, novas e importantes fronteiras se redesenham entre o decorativo, o sexual e o pornográfico. Exemplos tais como a arte performática, os “movimentos primitivos” da Nova Era, o uso do piercing como estimulante sexual, o próprio sentido da tatuagem como ponto de entrada num reino simbólico, são capazes de nos demonstrar o caráter absolutamente arbitrário e imprevisível do significado dessas práticas hoje.}

Ao longo de um ano e meio freqüentei estúdios de tatuagem no Rio de Janeiro e neles convivi com os principais "personagens" que compõem este universo: os tatuadores, seus assistentes e ajudantes, amigos ou parentes dos que trabalham no estúdio, pessoas que entram e saem desses espaços sem um objetivo definido e a própria clientela. Esse é um espaço que tem a propriedade, portanto, de “telescopizar” uma série de interações cruciais que se desenvolvem entre vários tipos de sujeitos e circunstâncias que fazem parte do universo da tatuagem e que, na maior parte das vezes, testemunham a própria experiência do ato de tatuar-se.

A CENTELHA EXPLOSIVA DA MOTIVAÇÃO

Optar pela realização de uma tatuagem é um processo que parece constituir-se a partir de uma espécie de “centelha explosiva” que, em sua “instantaneidade”, confere aos sujeitos que se tatuam uma identidade. Isso significa dizer que se trata de um fenômeno de construção in acto, de algo que faz dos sujeitos “eles mesmos”.

A contrapartida à noção de construção reflexiva de uma opção poderá ser acompanhada aqui enquanto puro ato, pura ação, puro movimento pragmático, mecânico, impulsivo.
“Olhei, gostei e fiz. Saí feliz.” “Foi de repente, eu nunca tinha pensado em fazer”.
“Foi ‘esquema Bahia’: tinha gente melhor lá que fazia, só que foi o primeiro que eu vi, aí resolvi fazer do nada, para marcar a viagem”. “É como uma explosão. É uma coisa que eu olho, gosto, e tenho vontade de fazer”. “Eu me lembro que deu a louca em mim, eu falei: “Eu quero fazer uma tatuagem agora”.
Estas seqüências “axiomáticas”, provenientes da maior parte dos discursos dos
sujeitos que procuravam explicar o motivo da realização de uma tatuagem, pode ser
encarada como a primeira peça-chave deste modelo de subjetividade, ou antes, de seu
esboço. Um “solavanco” súbito e imediatista. Uma espécie de explosão da vontade que
sequer permite que se instale o movimento reflexivo da escolha. A dimensão de explosãopode ser colhida quase que invariavelmente nos depoimentos dos entrevistados.

Curiosamente, o fato de não se poder pensar parece ser algo constitutivo do ato de realizaruma tatuagem. É uma modalidade de acesso direto do olhar ao ato, sem escalas. Nãoexistem adequações necessárias entre causa e efeito, ainda que, de nossa parte, fossemacionados mecanismos que procuravam chamar atenção para as razões, assim como para o porquê de uma motivação. A supremacia do olhar destaca-se de modo particular como primeiro passo na seqüência entre gostar e fazer. A esta primeira “vontade” consumada de
tatuar-se, na maioria das vezes sucedem várias outras, que os sujeitos só conseguem
controlar quando se vêem limitados pelo “travo” social que os impediria de obter inserções no mercado de trabalho.

Se de minha parte esperava encontrar uma dimensão imaginária forte, rica e
significativa, estruturando o mundo desses sujeitos, certamente não é disso que se trata. São bastante distintos os ingredientes da imaginação que compõem esse mundo. Um, entre esses elementos significativos, é sem dúvida a perseguição obstinada do bem-estar estético. A conversa nas salas de espera tem pouco fôlego para se manter. Uma tarde inteira passada em um estúdio de tatuagem é atravessada pelo torpor de encontros tão velozes quanto exíguos em sua ausência de consistência, onde a palavra é parcimoniosa, os scripts são desalinhavados e frouxos e onde a própria razão de ser das coisas parece definhar.

A supremacia incontestável do bem-estar estético nos novos registros assumidos
pela tatuagem em nossa sociedade nos conduz para o âmbito da estreita correlação
verificada entre epiderme, estetização e impulsividade. Algo como a “aparência é a
essência”, em primeiro lugar. Essas são subjetividades que parecem ser acionadas em sua significação a partir do momento em que o corpo assume a condição de tela para ser marcado. Não é à toa que são inúmeros os depoimentos que se referem aos indivíduos não tatuados como aqueles que ainda estão “em branco”. Em outras palavras, trata-se de uma circunstância em que se torna impossível dissociar a dimensão de expressividade das identidades de sua estetização. A expressividade manifesta-se através de conteúdos que privilegiam essencialmente os aspectos estéticos que repousam e se esgotam na própria superfície da pele. Nada se dá para além dela.

É como nos diz Vítor (um dos tatuados), procurando argumentar sobre a importância do valor estético da tatuagem em detrimento de qualquer apelo à compreensão de sua simbologia:

“A simbologia não vale nada... Porque o que adianta você ter um monte de simbologia e a tatuagem ser feia? Não adianta nada... O que adianta uma tatuagem feia? Não é uma coisa para enfeitar? Não tem que ser bonito? Eu penso assim. O que adianta você ter um símbolo que significa um monte de coisas para você e é uma coisa horrível? Não adianta nada... Eu acho que todo mundo devia ver assim, porque não adianta você ter uma tatuagem feia que significa muito. É lógico que, se você conseguir juntar os dois, aí fica interessante. Mas, quando eu fiz, eu não pensei em nada...
Só não queria nada pesado, caveira... Essas coisas pesadas assim... Eu acho que não ia ficar uma coisa legal. Mas você tem que gostar da tatuagem que você está fazendo, tem que achar bonito. Aliás, a tatuagem no Brasil, não sei como é em outros países, acho que ela é vista de uma outra forma, mas no Brasil ela é vista basicamente como estética. No Japão, na China, eu já não sei. Mas aqui eu vejo assim. O pessoal quer ver tatuagem bonita, não quer ver se tem sentido ou não.”
O depoimento acima torna-se paradigmático da forma pela qual os sujeitos
submetem o mundo aos seus “inquebrantáveis designos”. A incontornável visão sobre o
primado da estética em detrimento de qualquer atenção dedicada à compreensão do
significado do símbolos para esses sujeitos que marcam seus corpos, remete-nos a um
conjunto mais amplo de significados que integram esta forma particular de manifestação contemporânea de estetização da existência.

NADA ALÉM DA EPIDERME

A percepção e o uso que nossos informantes têm e fazem da estetização, os efeitos de externalidade, a importância intransponível do fato e do ato, o paroxismo da performance, a pulverização do sentido dos conteúdos simbólicos, além da crucial gramática do ocasionalismo subjetivo com todos os seus subprodutos, conduzem-nos para uma região ainda penumbrosa quando se pretende cruzar a "linha da epiderme". Cruzar, sugere-nos, neste caso, a possibilidade de visualizar espacialmente uma outra região subseqüente a uma região inicial, uma espécie de ultrapassagem de um plano para outro.

Pensávamos inicialmente nessas regiões como representantes dos planos interior e exterior dos sujeitos, a tatuagem assumindo uma espécie de descortinamento de um mundo de motivações internas. Não nos parece ter sido este o movimento adequado. Ou seja, ainstância ou o plano da epiderme parece falar por si e não através de si. Trata-se, certamente, de uma outra arquitetura, ou mesmo de uma outra formulação geométrica da identidade, cujos pressupostos subjetivos se vêm tornando contemporaneamente, para as ciências sociais, alvo, a um só tempo de imensa perplexidade tanto analítica quanto empírica.

*A pesquisa que antecedeu a realização deste artigo contou com a indispensável
participação da assistente de pesquisa Tatiana Braga Bacal. A ela devo os meus
sinceros agradecimentos.

Créditos: Socióloga, professora do departamento de Sociologia da PUC-RJ,
pesquisadora do Instituto do Pluralismo Cultural da UCAM, Coordenadora do Centro de
Estudos Sociais Aplicados da UCAM.

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